António Patacas e seu irmão João. António começou a trabalhar na CUF tinha 9 anos. Foto do próprio.
2. Sobrevivência quotidiana
Carências alimentares, desemprego, pobreza e exclusão
Em Outubro de 1918 o
Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios realizou um inquérito sobre o consumo
nos meios operários, chegando à conclusão que a “alimentação tipo” de uma
família operária apresentava graves carências proteicas, com um fraco consumo
de carne, leite e seus derivados, mas era também insuficiente em termos
calóricos, não atingindo em muitos casos as 3400 calorias, consideradas «mínimo
vital», para que um indivíduo pudesse trabalhar e sobreviver.
«Com um consumo alimentar
que mal chegava ao «mínimo vital», o proletariado não podia deixar de
apresentar numerosos sintomas de uma malnutrição que estava na origem das
principais causas de mortalidade entre as classes laboriosas – a tuberculose e
o tifo –, a par de uma das mais fortes taxas de mortalidade infantil da
Europa.»[1]
Numa altura em que a
Europa é devastada pela I Grande Guerra, o país sofre os efeitos da falta de
alimentos, uma inflação galopante, a escassez das matérias-primas, o
encerramento de muitas indústrias, graves crises de desemprego e miséria.
«Em toda a parte, faltaram as
matérias-primas e os alimentos. Quando os havia, era preciso comprá-los no
mercado negro, a preços loucos, ou em bichas gigantescas. A inflação
agravou-se. Muitas indústrias tiveram de cessar actividade, por falta de
abastecimentos.»[2]
Os livros de Actas da
Junta de Freguesia do Barreiro referenciam um quadro geral de carências e
privações de todo o tipo, com o espectro da fome a colocar-se diariamente,
desde os finais da I República.
Em 5 de Abril de 1923,
face às constantes solicitações de ajuda, a Junta de Freguesia do Barreiro
elabora uma lista com os nomes dos indigentes da freguesia, da qual constavam
112 pessoas, a fim de lhes ser distribuída uma oferta do Governador Civil, no
valor de 2$50[3].
Na véspera do Natal de
1925, a Junta do Barreiro, resolve oferecer um bodo aos pobres, mas a afluência
de pessoas foi superior ao esperado. Impotente, a Junta declarava: «nesta
freguesia a miséria que lavra em muitos lares é muito grande.»[4]
Os Livros de Actas dos
anos que se seguem, mostram sinais que o problema da pobreza e da mendicidade
não parece atenuar-se, pela menção constante a bodos e a esmolas efectuadas
pela Junta que, recorria a diversos meios para auxiliar os mais necessitados. É
assim, quando em 14 de Julho de 1931, a Junta do Barreiro procede à
distribuição de uma esmola «à pobreza envergonhada do Barreiro para o que se
irão procurar algumas creaturas que vivem na obscuridade...»[5].
O desemprego e a
penúria eram tais que, muitas pessoas recorriam à mendicidade nas ruas. Para
diminuir a impacto da situação, a Junta concedia ajudas monetárias para
transporte, a pessoas desempregadas, que quisessem regressar às suas terras.
Cita-se o caso de
Arminda Jesus, a quem foram atribuídos 5$00 para ajuda da passagem para a sua
terra, em virtude de o seu marido se encontrar desempregado[6].
O mesmo auxílio foi concedido a uma indigente, para que pudesse voltar para
Alcobaça. A Junta deliberou também socorrer a indigente Julieta da Conceição
com 10$00, para o transporte de duas filhas menores, para os asilos onde se
encontravam internadas. Regista-se ainda a atribuição de um subsídio de 15$00 a
um menor de 13 anos, de nome Albano para auxílio «da passagem para Oliveira de
Frades, a fim de se reunir a seu pai e seu avô, visto encontrar-se na mais
extrema miséria, mendigando pelas ruas da vila.»[7]
Se até aos anos 30 Portugal era
ainda um país predominantemente rural – com 80% da população a viver fora dos
centros urbanos com mais de 5 mil habitantes[8] – essa
feição começava agora a alterar-se, com o desenvolvimento de alguns pólos
industriais à volta dos grandes centros de Lisboa e Porto. O Barreiro vem a
ser, um dos casos mais exemplares.
Um dos primeiros actos desta
Comissão, criada em 1946, foi a elaboração de um Relatório dirigido ao Director
Geral da Assistência/Ministério do Interior que, espelha a situação que se
vivia no Barreiro. Começa assim:
«A vila do Barreiro,
centro industrial dos mais importantes, constitui simultaneamente importante
fulcro de pobreza e miséria. A par da população trabalhadora há, no Barreiro,
um considerável número de desempregados, que procuram trabalho, que buscam o
pão de cada dia. Vêm de todos os pontos do país, atraídos pela miragem de uma
colocação, que raros conseguem. As fábricas têm os seus quadros completos e,
por isso, muito difícil se torna, hoje em dia, arranjar nelas colocação.
Estes homens, estas
mulheres que vem procurar trabalho gastam na viagem para aqui os seus últimos
recursos. Não havendo trabalho deixam-se ficar na esperança e ilusão de que um
dia haverá. E vá de estender a mão à caridade, vá de procurar nas entidades
públicas subsídios indispensáveis ao seu sustento, vá de revoltar-se contra
tudo e contra todos.»[9]
A insuficiência de
meios, levava famílias inteiras, a socorrer-se da assistência social,
restando-lhes somente o apoio da Sopa dos Pobres ou a ou a Junta de Freguesia e
mais tarde, a Comissão Municipal de Assistência.
No seu balanço anual
do ano de 1945, a Comissão Administrativa da Sopa dos Pobres registou a
distribuição de 80.975 refeições gratuitas, com uma média mensal de 6746 refeições,
das quais 224 refeições diárias.[10]
Muitos dos que acorrem à Sopa
dos Pobres são desempregados, alguns com famílias numerosas de 7 e 8 pessoas e há uma com 10.[11]
Os Livros de Actas da
Comissão Municipal de Assistência fazem eco das situações de miséria que se viviam no Barreiro
e como reflexo deste fenómeno, verifica-se o aparecimento de um variado leque
de instituições e associações de apoio aos pobres e carenciados, nos
finais do conflito mundial.
Citamos algumas em
funcionamento em 1946: o Socorro Social, com um serviço denominado “Gota de
Leite” destinado a crianças; as Comissões Municipais de Assistência do
Barreiro, Palhais e Lavradio; a Sopa dos Pobres; a Sopa dos Desempregados,
ambas com cozinha própria onde forneciam refeições gratuitas; o Instituto dos
Ferroviários; o Asilo D. Pedro V, o Albergue para velhos, a Misericórdia.
Todas estas
instituições facultavam apoio, à população pobre do Barreiro e a idosos,
especialmente os que aqui chegavam provenientes «de outras regiões do País
(especialmente agrícolas), com poucos recursos para sobreviverem com dignidade
nas suas terras e que passam a recorrer à Assistência, pela carência de meios
de subsistência e na doença, quando não encontram logo a almejada ocupação».[12]
Comissão Municipal de Assistência. Barreiro, 1947.
Em 18 de Maio desse
ano de 46, a Comissão Municipal de Assistência do Barreiro, enviou um ofício ao
Governo Civil de Setúbal, dando conta dos pedidos de auxílio que chegavam à
instituição. Pediam leite para crianças e doentes, a farinhas para lactantes
filhos de pais extremamente pobres, pagamentos de cautelas de penhores,
especialmente roupas e utensílios de trabalho e pagamento de rendas «de
barracas a indigentes».[13]
A Comissão não era imune às
influências políticas, conforme se pode verificar com o que sucedeu em vésperas
das comemorações do 28 de Maio. Nesta data, o Presidente da Comissão de
Assistência, alertava o Presidente da Câmara Municipal, para a passagem do
aniversário da designada «Revolução Nacional». Sugeria que autorizasse o
pagamento de várias cautelas de penhores, o que, segundo as suas palavras
«seria bastante agradável para os interessados e ao mesmo tempo lhes fazia ver
que não haviam sido esquecidos nesta ocasião em que apelaram para V. Ex.ª.»[14]
Em tempo de poucos
recursos e ausência quase total de bens materiais, nada escapava ao penhor, nem
as peças de vestuário, mesmo as mais íntimas. Da consulta de uma lista de
penhores, em que tudo eram objectos usados, constavam 2 cobertores de lã e
algodão, 2 xailes de lã, 1 xaile preto, 2 camisas uma de algodão, 3 pares de
cuecas, 1 lenço de algodão, 1 par de calças de fazenda, 1 casaco de fazenda e
outro de linho, 1 vestido de crepe, 2 metros de flanela, 7 lençóis de algodão,
1 ferro de engomar[15].
Em Dezembro desse
mesmo ano a Comissão Municipal de Assistência dirigiu um pedido às maiores
empresas do Barreiro, solicitando auxilio para «os necessitados e indigentes
deste concelho, de pequena área e grande população, na sua maioria gente
operária» a fim de fazer face «aos sofrimentos de tantos infelizes e
desprotegidos da sorte».[16]
As Actas da Comissão
de Assistência dão, ainda, conta de situações limite, como a de uma mãe, em
1946, que em desespero e sem recursos para acudir à família, pede o
internamento dos seus filhos em asilo.[17]
Notas:
1. MEDEIROS, Fernando – A Sociedade e a Economia
Portuguesas nas Origens do Salazarismo, s.l., A Regra do Jogo, 1978, p. 143
2. «A República» RAMOS, Rui, vol. VI, História
de Portugal, Lisboa, dir. José Mattoso, C. Leitores, 1994, p.519
3. Junta de Freguesia do Barreiro (JFB), Livro de Actas da
Junta, 1923-1931
4. Idem
5. JFB, Livro de Actas da Junta, 1923-1931
6. Idem
7. Idem
8. «O Estado Novo», ROSAS, Fernando - vol.
VII, História de Portugal, Lisboa, dir. José Mattoso, Estampa, 1994,
p.61
9. Arquivo Municipal do Barreiro (AMB), Comissão
Municipal de Assistência, CMB/B/Q/04/Cx. 01, 1946
10. AMB, Comissão Administrativa da Sopa dos Pobres –
Receita e Despesa referente ao Ano de 1945, Tipografia Comercial, Barreiro,
1946, CMB/B/Q/04/Cx. 01
11. AMB, Comissão Paroquial de Assistência do Barreiro –
Relação dos Desempregados Beneficiados com a Sopa do mês de Novembro de 1946,
CMB/B/Q/04/Cx. 01
12. PAIS, p.246
13. AMB, CMB/B/Q/04/Cx. 01, 1946
14 Idem
15. Idem
16. Idem
17. Idem
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