Grupo de trabalhadores da CUF, Praça de Santa Cruz, Barreiro, c. 1940. Arquivo Municipal do Barreiro
para que não se diga que não há memória.
porque os tempos da miséria e da fome parecem estar a voltar. inicio aqui a publicação de uma Comunicação apresentada ao Colóquio Internacional "Industrialização em Portugal:o caso do Barreiro. 100 anos da CUF 1908-2008"
A condição operária no Barreiro: Primeira metade do séc. XX. Um retrato social
Autora: Rosalina Carmona
Resumo
A partir de 1907 quando a Companhia
União Fabril chega ao Barreiro e tem início o processo que transformará a vila
no maior centro industrial do país, intensificam-se os fenómenos migratórios
que, desde meados de oitocentos, já atraíam muita gente ao Barreiro.
De acordo com a imprensa local, em
1930, ao Barreiro dirigiam-se milhares de pessoas,
de todos os pontos do país.
«Gente de todas as aldeias vilas e cidades do paíz
para aqui emigrou, como para um novo “Brasil” em miniatura»[1].
Infelizmente a CUF não trouxe só
bem-estar e progresso. Enquanto a antiga vila se transformava num centro altamente industrializado e a Companhia União Fabril constituía o motor de desenvolvimento do concelho e do país, fenómenos como a falta de habitação, a pobreza, a fome, a exclusão, a doença e a poluição, assolavam o Barreiro.
O que analisamos em seguida, são as repercussões
dramáticas desse desmedido afluxo de pessoas ao Barreiro e a forma como todos esses aspectos se reflectiram nas suas vidas.A investigação privilegiou fontes como: os Livros de Actas da Câmara
Municipal, da Junta de Freguesia do Barreiro, da Comissão de Assistência
Municipal, da Comissão Municipal de Higiene, entre outros documentos e
jornais locais que, permitem antever um quadro social que não se reporta
exclusivamente ao universo CUF mas, constitui como que o espelho da sociedade
da época. Evidências de um quotidiano que identificamos com uma grande parte da
população operária do Barreiro, em pleno apogeu cufista.
1. O problema habitacional:“Vilas Operárias” e Bairros Operários
Até ao século XIX o Barreiro viveu da pesca, da
moagem, de artes e ofícios que em pequenas oficinas e estaleiros ocupavam uma
parte da população, de alguma agricultura, sobretudo nas quintas, fazendas e
pequenas hortas e vinhas que cercavam os arrabaldes da vila. A partir de meados
de oitocentos, com a implantação do caminho-de-ferro, alguns terrenos começam a
ser loteados e urbanizados e dessa forma começam a surgir, no exterior do
núcleo urbano, alguns “bairros”, destinados aos ferroviários e suas famílias. O
primeiro surge no Alto José Ferreira, junto à primitiva estação ferroviária
(actuais oficinas da EMEF), perto do local onde em 1935 seria construído o
Bairro Ferroviário, no Palácio do Coimbra.
Outros apareceram próximos ao apeadeiro do
Barreiro-A como o “Bairro Miranda”, a “Vila Manso”, a “Vila Braz”, ou o “Bairro
do Teodósio” que lhe ficava anexo, com as suas casinhas de adobe, onde os
inquilinos pagavam entre 5 e 10 tostões, todos no Alto do Seixalinho.[2]
A partir da instalação do caminho-de-ferro
desenvolveram-se os fabricos corticeiros e ganha corpo uma corrente migratória,
com origem no Alentejo e serra algarvia que, não mais haveria de parar em
direcção ao Barreiro. Desta fase registamos o aparecimento de algumas “Vilas” e
“Correntezas Operárias”, como as da Rua Marquês Pombal, Largo Alexandre
Herculano e Rua Miguel Bombarda.
Refira-se que as chamadas “Vilas Operárias”
surgem no final de oitocentos, construídas por negociantes e industriais, como
prédios de rendimento, destinados ao aluguer.
Em Lisboa são vários os exemplos mas talvez os
mais conhecidos, ainda hoje, sejam a “Vila Grandela” em Benfica, construída
pelo proprietário para o seu pessoal; a “Vila Santa Marta” formada por dois
pisos, com quartos para alugar, individuais ou colectivos, com divisões
minúsculas e ainda a “Vila Stº António”, propriedade do Conde Burnay «uma
verdadeira caserna operária com quartos e dormitórios»[3].
Um quadro geral das condições de vida do
operariado barreirense é traçado em 1910, pelo jornal “Avante”, que aborda o
problema, referindo o insuficiente número de casas, os aluguéis caros, a falta
de conforto e sobretudo, a falta de condições de salubridade e higiene das
casas.
«São geralmente trez ou quatro, às vezes cinco
divisões pequeníssimas, casas terreas ou assoalhadas, mas sem caixa d’ar nem
ventilação adequada. Não possuem agua a não ser algumas em cujos patteos há
poço, nem pias de despejo, por falta de colectores geraes na villa. Aquellas em
que o proprietário tem construída fossa para despejos, valorisadas por esse
melhoramento, sobem consideravelmente de preço o que as torna inacessíveis aos
ganhos do operariado.»[4]
Os problemas causados pelos grandes aglomerados
populacionais que viviam sem as elementares condições de higiene, colocou-se em
Portugal com maior acuidade, quando em 1899, Lisboa foi devastada pela pulmónica.
Começam então a circular ideias de criar bairros
operários “modelo”, que deveriam proporcionar aos seus moradores um espaço
habitável, com higiene e conforto.
Apesar de estas ideias só se tornarem correntes
em Portugal no século XX, elas já eram bastante populares em toda a Europa,
logo nos princípios do século XIX. Existem muitos exemplos, de grandes patrões
e industriais, que constroem bairros para o seu pessoal. O mais antigo talvez
seja o dos «proprietários de Grand-Hornu em Mans, quem primeiro na Bélgica
em 1817 construíram casas para operários».[5]
Podem ser citados outros casos [nas cidades de Essen ou
Dusseldorf] na Alemanha, em França [Paris e Puteaux] na Inglaterra [Londres] e Áustria mas é
sobretudo a Bélgica que é considerada na época o «país modelo, que tanto tem
melhorado a situação das suas classes operárias…»[6], isto
ainda em pleno século XIX.
Em sentido inverso, em Portugal em 1912, os
operários e assalariados dos grandes centros industriais de Lisboa, Setúbal,
Covilhã, Porto e Braga, viviam em bairros pobres, apertados e sujos,
«autênticos viveiros de germes contagiosos».[7]
Ciente do risco que tais situações acarretavam
para a saúde pública, o Ministério do Fomento da I República, alertava que se
melhorassem as condições dos operários, a fim de que «se não turve a higiene
das cidades com o perigo de todos, para que continue a haver braços fortes que
movam as enxadas e martelos, mãos nervosas e ágeis nos fusos e teares»[8].
A mesma fonte prevenia ainda os “patrões
inteligentes” que uma habitação cómoda, limpa e saudável, além de atrair o
operário e fixar a família, fortalecia hábitos de asseio do corpo, enfim
conferia melhor disposição ao trabalhador.
Considerava-se finalmente, como particularmente
vantajoso o facto de o operário morar perto da fábrica, pois que, assim perdia
muito pouco tempo no caminho de casa para a fábrica e vice-versa, bem como se
desenvolvia «nesse pessoal o amor por aquelle meio fabril, que, mais e mais, se
vae arraigando pelo correr do tempo.»[9]
“Pátios Particulares”
Com a Companhia União
Fabril em expansão permanente, a intensificação da produção industrial exigia
cada vez mais mão-de-obra. Em resultado deste processo, o Barreiro começa a
registar a partir dos anos 30, um crescimento muito sensível da população,
processo que vai inscrever-se nos fenómenos de êxodo rural em direcção às
cidades, que atravessam toda a década de 30 e culminam na década de 40[10].
«O afluxo populacional às cidades portuguesas tem o seu
momento de maior impacto na década de quarenta, em particular a Lisboa e aos
concelhos limítrofes.»[11]
Segundo um estudo da Câmara
Municipal, datado de 1848, estimava-se que naquela década, a população tivera
um aumento aproximado de 40%[12], sem
que o ritmo da construção acompanhasse o progresso demográfico.
Neste contexto o problema da falta de habitação,
pela sua amplitude e pelas consequências, colocava-se como um problema de
natureza social de grande gravidade. O estudo considera que em Portugal, face
ao número de famílias e indivíduos, faltavam muitas habitações e o problema era
agravado pela existência de «milhares e milhares de outras com poucas ou
nenhumas condições de higiene, de comodidade e de conforto, onde se amalgamam
famílias inteiras que vivem desprovidas dos requisitos mínimos que possam
torná-las saudáveis e felizes.»[13]
Algumas destas ‘habitações’ situavam-se em
pequenos pátios no interior de quintais e eram «casinhas de tijolo e madeira,
abarracadas, à retaguarda das habitações (ou para lá dos muros de vedação),
constituindo minúsculos pátios com serventia para a rua.»[14]
No inquérito realizado, a Câmara Municipal,
registava que as condições em que habitava uma grande parte da população
operária eram verdadeiramente angustiantes.
«…num prédio antigo existente no centro da vila,
vive um família de cinco pessoas, que não dispõem de ar nem de luz directa, e
que não tem, também, instalação eléctrica. O chefe de família é, operário na
C.U.F. e paga de renda 60$00.»[15]
No mesmo inquérito é recenseada a existência de
486 barracas no concelho, habitadas nas condições mais precárias e estimava-se
que o número tivesse aumentado no último ano.
Estas
barracas, toscas e doentias, não ofereciam defesa contra o frio, o calor ou a
chuva e geralmente eram constituídas apenas por uma divisão única, onde
habitava toda a família. Foram surgindo nos arredores da vila, espalharam-se
pelo Bairro das Palmeiras (vulgo “Bairro da Folha” porque as coberturas eram em
folha de Flandres), Alto do Seixalinho, Quinta dos Silveiros, Alto da Paiva,
Recosta, etc. e chegaram ao concelho da Moita, nomeadamente à Baixa da
Banheira, ou “Bairro Changai” como era conhecido à época.
«Numa delas constituída apenas por um cubículo –
habitam nove pessoas. É frequente, no entanto, encontrar casos em que cinco
pessoas dormem no mesmo cubículo e na mesma cama. Encontrámos alguns, em
visitas que fizemos ao Alto do Seixalinho e Quinta dos Silveiros, assim como em
certos “pátios particulares” no Bairro das Palmeiras.»[16]
O documento informa ainda que, algumas barracas
são habitadas por indigentes, mas «grande parte é utilizada por operários com
grandes encargos de família e que vencem pequenos salários de 20 e 30$00
diários.»
Muitas vezes para quem
chegava do meio rural e tentava o seu ingresso na fábrica, esta era a primeira
habitação. Com o tempo podia arranjar-se melhor ou então, as famílias que
ficavam por estes “pátios” arrastavam uma existência miserável, em alojamentos
precários e sobrelotados, onde a vida «decorria entre imundície e imoralidade»[17]
e palavras como conforto ou privacidade não faziam qualquer sentido.
O Bairro Operário da CUF
Cem anos volvidos sobre a construção do primeiro
bairro operário na Europa, Alfredo da Silva manda edificar em 1909, o Bairro de
Santa Bárbara. Para os padrões de alojamento da época o bairro da CUF
constituiu uma novidade, pois oferecia melhores condições aos moradores,
possuía rede de esgotos, abastecimento de água potável e iluminação eléctrica.
O bairro representa um dos aspectos mais
visíveis da chamada “obra social” da CUF, na qual Alfredo da Silva se empenhou
pessoalmente, ao defender um modelo ao qual não era alheia «uma vertente
política bem vincada»[18]. Na
realidade, com o objectivo de evitar greves e protestos, Alfredo da Silva,
oferecia benefícios aos operários, desarmando os seus opositores políticos,
especialmente republicanos e socialistas, que «pretendem chamar para os seus Clubs
o pessoal da Companhia a fim de lhe incutirem no espírito insubordinação»[19].
A “obra social” da CUF
enquadra-se numa lógica de estratégia empresarial. A construção do bairro
no interior do próprio espaço fabril, é um dos casos mais paradigmáticos da
política de fixação do operário ao local de trabalho, num “modelo paternalista”[20],
tendente a desencorajar qualquer atitude de contestação política ou laboral.
Com efeito «o rosto mais simbólico do
capitalismo em Portugal»[21], não
se mostrava muito apoquentado com as condições de trabalho dos seus operários,
opondo-se tenazmente à Lei das oito horas de trabalho[22] e
recusando-se a aplicar «legislação que impunha a responsabilidade patronal em
certos domínios, como os acidentes de trabalho…»[23].
Uma das condições relevantes para atribuição de
uma casa no Bairro de Santa Bárbara era, a função que o trabalhador
desempenhava na fábrica, e a facilidade que representava para a empresa, a
possibilidade de fazer «chamadas frequentes fora das horas normais de serviço
ou horários de turnos» do pessoal.[24]
A admissão às casas passava pela «existência de
apertados e rígidos critérios de acesso à habitação disponibilizada pela
Companhia»[25], visto que somente os
trabalhadores efectivos ou os seus familiares eram escolhidos para as casas que
vagavam.
Por outro lado, a política selectiva da CUF
estendia-se a certos domínios da vida pessoal dos candidatos às habitações,
embora essa questão fosse confidencial, conforme consta das “Normas para
Atribuição de Casas” no Bairro de Santa Bárbara. Na verdade, uma das primeiras
condições exigidas aos futuros moradores passava, por uma conduta moral
irrepreensível, referindo-se a «constituição legal da família» e a «filiação
legítima dos filhos»[26],
como indispensáveis à sua atribuição.
Muito embora não fosse mencionada, a questão
religiosa parece não ter sido descurada, pois o novo Bairro da CUF, no Alto do
Seixalinho, construído em 1955, era conhecido entre muitos barreirenses como o
“Bairro dos Católicos”.
Considerados todos
estes aspectos, conclui-se pela evidência de que a política habitacional da CUF não tinha objectivos meramente filantrópicos, ao criar um bairro para os seus
trabalhadores, mas, estava direccionada sobretudo, para uma dependência cada
vez maior do operário face ao patrão e à empresa, tolhendo e condicionando os
comportamentos dos moradores do bairro.
No próximo post:
2. Sobrevivência quotidiana: Carências alimentares, desemprego, pobreza e exclusão
NOTAS
1 “O Barreiro Despresado” in Eco do Barreiro 4 de
Outubro, 1930, editorial de 1ª pág.
2 CARMONA, Rosalina – …do Barreiro ao
Alto do Seixalinho Um Passado Rural e Operário, Barreiro, Junta de
Freguesia do Alto do Seixalinho, 2005, p. 68
3 GROS, Marielle Christine – O Alojamento Social sob o Fascismo,
Porto, ed. Afrontamento, 1982, p. 98
4 «Questionário ao Trabalho Industrial -
VII. Condições da Vida Operária», Avante, 10 de Novembro de 1910, p. 4
5 OLIVEIRA, J. de Simões – «Contribuição para Estudo das
Casas para Operários», Boletim do Trabalho Industrial, nº 66, 1912,
Lisboa, p. VI
6 Idem, p. 3
7 Ob., cit. p. VI
8 Idem, Ibidem
9 Idem, p. 29
10 JANARRA, Pedro – A política
Urbanística e de Habitação Social no Estado Novo, Tese de Mestrado em
Sociologia (texto policopiado), Lisboa, Biblioteca Nacional, 1994, p.33
11 JANARRA, Ob. cit.
12 Arquivo Municipal do Barreiro (AMB), «O Problema
Habitacional no Concelho do Barreiro – Estudo – 1948», AMB, CMB/M/A/ 04.01/Cx
02 1945-51
13 Idem
14 PAIS, Armando da Silva – O Barreiro
Contemporâneo, Barreiro, CMB, vol. I, 1971, p. 306
15 AMB, «O Problema Habitacional …»
16 AMB, «O Problema Habitacional …»
17 PAIS, Armando da Silva – O Barreiro
Contemporâneo, Barreiro, CMB, vol. I, 1965, p. 307
18 FARIA, Miguel – Alfredo da Silva Biografia 1871-1942,
Lisboa, Bertrand, 2004, p. 112
19 FARIA, Ob. cit.
20 Vd. ALMEIDA; Ana Nunes – A Fábrica e
a Família Famílias operárias no Barreiro, Barreiro, Câmara Municipal do
Barreiro, 2ª ed., 1998, p. 170
21 ALVES, Jorge Fernandes – Jorge de
Mello «Um Homem» Percursos de um Empresário, Lisboa, Inapa, 2004, p. 15
22 Lei Nº 296 de 22 de Janeiro de 1915
23ALVES, p. 55
24 “Bairro Operário Normas para
Transferência de Casas”, texto policopiado, Quimiparque
25 MARTINS, Alexandre, acedido em http://
www.aps.pt «Paternalismo, habitação,
fidelização operária. O caso do bairro da Stª Bárbara no Barreiro» in Actas
dos Ateliers do V Congresso Português de Sociologia, Atelier: Cidades,
Campos e Território, 2004
26 CARMONA, Rosalina – …do Barreiro ao Alto do Seixalinho
Um Passado Rural e Operário, Barreiro, Junta de Freguesia do Alto do
Seixalinho, 2005, p. 122
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