25 junho 2010

o rio da minha infância




























o rio que corre na minha aldeia já não é o mesmo. mas tem o mesmo nome, segue o mesmo curso e vai desaguar no mesmo exacto ponto da margem esquerda do guadiana. as suas águas antes corriam livres e hoje perdem-se no caminho, presas como ovelhas em apriscos, a que chamamos barragens. o nome do rio deram-lho os habitantes da minha aldeia. há tantos séculos que ninguém se lembra já do seu significado. vá-se lá saber o quer dizer enxoé. nas margens deste rio sonhavam os pescadores de ribeiras apanhar pardelhas nas suas nassas, aparelhos de pesca tão antigos como os homens, da minha aldeia. mas a minha aldeia também já não é a mesma. hoje a minha aldeia é uma vila e as ruas onde brinquei e corri,  cheias de gente rumorosa, estão agora povoadas de fantasmas, mulheres velhas e gastas pela ausência de maridos,  filhos e netos. as suas mãos vazias agitam lenços brancos, molhados de lembranças. a minha aldeia já viu partir tanta gente! acho que também o rio partiu. apenas a ponte persiste em ficar, presa ao tempo dos homens. talvez ela sonhe também em partir, em busca do rio da minha infância.

18 junho 2010

José Saramago para sempre Levantado do Chão



neste dia em que José Saramago interrompeu para sempre a escrita, recordo da sua vasta obra uma passagem de Levantado do Chão, para mim a mais significativa de todas as histórias que escreveu. respigo justamente um trecho em que o nobel da literatura portuguesa  se refere à passagem dos presos políticos alentejanos pela estação ferroviária do barreiro, quando chegavam aqui de comboio escoltados pelos guardas da gnr ou pelos agentes da pide, a caminho das prisões fascistas. na subtileza da sua escrita temperada de fino humor, Saramago descreve os sentimentos de João Mau-Tempo, personagem principal desta história do latifúndio, trabalhador rural alentejano preso na década de 50 por ter participado num levantamento de rancho.
«Passemos agora sobre a viagem, uma vez que não é capítulo admitido na história dos caminhos de ferro em Portugal. É o corpo tão soberano senhor que João Mau-Tempo chegou a dormitar, ao embalo do vagaroso da carruagem e do bater do rodado na junção dos carris trástrás, mas depois abria os olhos angustiado para cada vez descobrir que não ia a sonhar. Depois foi o barco para o Terreiro do Paço, se eu me atirasse à água, são pensamentos negros, acabo comigo, e não de acção heróica, que tem João Mau-Tempo isto de singular de não ter visto nunca cinema e não saber portanto quanto é fácil e aplaudido o salto sem mãos sobre a amaurada, o mergulho impecável e aquele nadar americano que leva o fugitivo ao misterioso barco fretado que afastado espera com a embuçada condessa que para esta acção cometer quebrou os sagrados laços da família e os ditames do património condal. Mas João Mau-Tempo, só mais tarde se virá a saber, é filho de rei e único herdeiro do trono. real, real, por João Mau-Tempo rei de Portugal, aí encosta o barco ao pontão, quem ia adormecido acordou, e quando o preso dá por si estão dois homens na sua frente, Então é só este, perguntam, e aquele que veio de acompanhante responde, Desta vez não há mais.» p. 240

11 junho 2010

um país em vias de extinção

portugal é cada vez mais um país em vias de extinção. primeiro começaram a encerrar as fábricas, a acabar com a indústria de norte a sul do país. arrancaram vinhas, olivais e tudo e mais alguma coisa e destruiram a agricultura. com a pesca fizeram o mesmo. depois como já não havia sectores produtivos viraram-se para os serviços e aí começou o encerramento das escolas  com dez alunos, a seguir foram as maternidades e os centros de saúde - quem quiser ter filhos ou necessitar de assistência médica no interior do país só se for a espanha - agora são as escolas com 21!!! alunos. porquê 21? é porque ainda havia muitas com 20? até escolas recentemente equipadas com as últimas tecnologias, como a escola modelo que o primeiro ministro tanto elogiou não escapou à fúria do encerramento. começaram no interior - e basta afastarmo-nos uns quilómetros do litoral para presenciar a tristeza das aldeias vazias, povoadas por meia dúzia de velhos que resistem até ao fim, só na última década emigraram mais de 700 mil pessoas - e agora, estando o país interior já praticamente encerrado, voltaram-se para o litoral. é o que estão a tentar fazer com o encerramento das urgências pediátricas da maior parte da margem sul. deve ser a ver se pega e a seguir vai o resto.  não seria mais rápido e económico encerrar definitivamente o país - de uma vez por todas! -  e declarar portugal um país em vias de extinção? assim acabavam-se as chatices...

09 junho 2010

chuva de verão




a noite escorre pelas vidraças
como a chuva
suave
que numa leve capa
envolve a cidade

fica estranha
a noite sem estrelas

a tempestade
em reflexos roxos
rasga o silêncio
em tonalidades belas

as vagas no rio
arrepiadas de medo
ou de frio
enrolam-se e guardam segredos
de mitos antigos
verdadeiros ou não

é apenas mais uma noite
e a melancolia da chuva de verão