31 agosto 2012

paisagem



as paisagens viajam
em nós
inscritas no nosso corpo
falam
a nossa voz

nós próprios somos
lugares
do ser
do sentir
do permanecer
do ficar
e do partir

se ontem fomos planície
 somos hoje rio
amanhã
 quem sabe
mar

ou
para sempre seremos
aquela árvore
que desapareceu
e
queda ficou
no espelho do nosso olhar

uma paisagem
ou eu

29 agosto 2012

a minha angústia



a minha angústia é igual à da teresa, mãe do vasco
a minha angústia é igual à da adriana, mãe do david
e da patrícia
a minha angústia é igual à da mãe do fábio
a minha angústia é igual à da mãe da virgínia
a minha angústia é igual à da eulália, a mãe do carlos
a minha angústia é igual à da mãe filipina, namorada do carlos
a minha angústia é igual à da mulher do vicente
a minha angústia é igual à da serafina
a minha angústia é igual à da augusta, mãe do mauro
a minha angústia é igual à da ana, mãe do luís
a minha angústia é igual à da mãe da sofia
a minha angústia é igual à da mãe do zé
a minha angústia é igual à da mãe do joão
a minha angústia é igual à da teresa, mãe do manel joaquim
 e da margarida
e da teresa margarida
a minha angústia é igual à da maria, mãe do bento


a minha angústia é igual à das mães que vão envelhecer com saudades
dos filhos emigrantes

a minha angústia é a angústia de um país

a minha angústia é igual à minha raiva

e não acaba aqui

vai aumentando todos os dias


24 agosto 2012

estórias do latifúndio. pias, baixo alentejo


como era difícil a vida nas aldeias do latifúndio! tudo era difícil. para as crianças ainda mais. tinhamos de crescer depressa. e crescíamos.  a aprendizagem da vida começava muito cedo. ficava-se adulto, independentemente da idade, quando se começava a trabalhar. e nunca mais se parava.

recordo-me agora,  nem sei porquê, quando ía-mos ao poço, buscar "água de beber", em cântaros de barro e enfusas, à cabeça.  como custava, e pesava! um cântaro cheio de àgua.
ao fim da tarde, no verão, pela fresquinha lá íamos, mulheres, mães e raparigas, pela linha do comboio, ao poço do estrela. ficava a mais de um quilómetro de distância, mas a água era muito azul e fresca. custava 7 tostões, o cântaro, se não estou em erro. depois era ver,  e aprender, a arte e a elegância de colocar sobre a cabeça a enfusa, de modo a não  cair e partir-se.  autênticos malabarismos e «fenezas», que é outra maneira de dizer proezas.

equilíbrios de mulheres e meninas
bailarinas
jogos e movimentos
flutuantes
balançados

as pernas elevam o corpo
nas ancas o jeito cadenciado
articulado
com a firme haste
do pescoço

na cabeça
coroada
das raparigas
bem levantadas
vão ideias difusas
em barro fresco
no vermelho das enfusas
águas e vida
vidas

direitas que nem um fuso, assim deveríamos chegar à rua do castelo, ao chiadinho, ou ao caganito, cabeças e pescoços dormentes. 
já a "água de gastar" ía-se buscar ao poço do comboio. chamava-se assim porque era junto à linha férrea, local onde os comboios a vapor paravam para tomar água. íamos às escondidas, sob a cumplicidade da velha georgina, guarda da passagem de nível. a cp não permitia. a água deste poço não prestava para beber, apesar de ser das mais frescas. servia apenas para os usos da casa. já de lá tinham tirado alguns afogados. lembro-me do caso de uma rapariga de 20 anos, "deixada" do namorado.

até parece que foi há séculos... e no entanto... isto eram os anos 60.

as estórias do latifúndio são assim, não têm fim. surgem,  sem quê nem porquê... 

19 agosto 2012

estórias do latifúndio. torre vã



por alentejos ignorados e desconhecidos chega-se à aldeia de torre vã, concelho de ourique. que nome  estranho. como se pode erguer uma torre vã!? será o vento que a sustenta? será o esforço humano que a suporta? esta herdade/aldeia, quem sabe com origem medieval, dado o topónimo torre (defesa), parece ter tido origem numa grande propriedade senhorial mas, o que lê o nosso olhar é, que esta aldeia do latifúndio foi criada para servir, a uma grande casa agrária que vivia alcandorada no seu trabalho e  na exploração de gerações e gerações de famílias rurais.


um grande palácio, domina tudo em redor, e apesar do abandono em que parece estar, e várias dependências, sugere que naquela propriedade viviam os senhores do privilégio. junto a uma ribeira, de que não consegui saber o nome, havia uma casa de fresco, de azul pintada, por dentro e por fora anilada, rodeada de arvoredo. nas margens dessa ribeira crescem, faias e freixos. dentro da casa, adivinha-se, viviam os senhores como altos seres marinhos, claros e arrogantes.




nas cercanias do palácio, em pequenos casebres habitavam homens e mulheres, de pele escura, negros de tanto trabalho. como formigas em carreiro, regavam com gotas do próprio rosto, os canteiros do jardim, a horta, o pomar, as searas, o olival. trabalhavam no sol a sol, de dia. de noite a aldeia velava. assim, que nada faltava aos senhores do privilégio. a aldeia trabalhava, trabalhava, mas o trabalho nunca chegava. a aldeia vivia aprisionada nos muros do latifúndio. 


até que um dia rebentou a revolução. e os homens e as mulheres e as crianças e os jovens da aldeia vestiram-se dos sentimentos mais puros, rasgaram os muros e a servidão e ergueram a bandeira da coragem e firmes, e rijos, mudaram o mundo e criaram futuros. e os senhores do privilégio rastejaram, para o brasil e para a suiça e outros esconderijos. por uns tempos acabou o mal e reinou a festa universal, a fraternidade e a liberdade. mas o sonho na aldeia durou pouco - duram pouco os sonhos dos pobres - foi breve, deu em nada. e pouco a pouco os senhores do privilégio voltaram. e lá estão de novo, no palácio. hoje a aldeia voltou a ser murada.

rc

15 agosto 2012

o barreiro era uma terra de promessas. era uma vez...

cristiano da fonseca júnior e sobrinho. foto de manuela fonseca

sim, era uma vez uma terra chamada barreiro, que até meados do século xix vivia na idade média e de repente, com o comboio entrou na modernidade. uma terra que cresceu, e se desenvolveu graças ao caminho de ferro. sim, que o comboio sempre foi, e ainda é, modernidade e progresso. e graças às populações que aqui afluíam em busca de trabalho. o barreiro era uma terra de promessas. e no comboio chegava o trigo, das grandes planícies do sul alentejano e muitos, muitos alentejanos, que consigo traziam a sua fala do sul. e é por isso que, ás vezes, os barreirenses parecem alentejanos na fala. e chegava também a cortiça, que de comboio vinha. e nos comboios de carga, escondidos, muitos algarvios. e depois já vinham com bilhete. e outros a pé, pela linha. até ao barreiro.
mas com o comboio chegou, também, a exploração capitalista mais moderna. e nessa terra construíram-se fábricas. o alfredo da silva construiu muitas fábricas. e o barreiro tornava-se, segundo os manuais "a mais moderna vila industrial". nunca se questionando, esses manuais, acerca das condições de vida, miseráveis, dos operários, dos bairros de barracas entre o lavradio e a baixa da banheira. só em 1948 eram mais de 480 barracas, uma enxóvia imensa, onde cresciam crianças e se desenvolviam doenças. xangai, assim lhe chamavam.
e a cuf desenvolvia-se e a exploração intensificava-se e a resistência ao fascismo também. e as prisões enchiam-se de corticeiros, ferroviários e outros operários.
e as altas fábricas do maior potentado capitalista da península ibérica prosseguiam, vomitando gases e fumos venenosos, que tudo queimavam: hortas e pulmões.
e as oficinas alargavam-se e metiam sempre mais gente, chegaram a ser 2000. tocava a buzina ás 6 da tarde, e as ruas vestiam-se de ganga azul. ás segundas feiras cheirava a ganga lavada.
e o comércio crescia e desenvolvia-se. e alguns filhos de operários já chegavam às universidades e davam excelentes engenheiros.
esta é uma história de um barreiro que começou com o caminho de ferro.

hoje encerraram as oficinas gerais do caminho de ferro no barreiro. já não vão abrir quando os seus operários acabarem as férias. ficam em casa.
e o caminho de ferro, que tudo movimentou no barreiro, acaba.
e com ele, uma parte fundamental da história desta terra, e de portugal, desaparece. quando os terrenos das oficinas forem urbanizados, para mais especulação urbana. todos ficaremos mutilados sem as oficinas (primitiva estação ferroviária, anterior a santa apolónia!), o belíssimo edifício romântico da estação fluvial, a cocheira oitocentista (rotunda das máquinas), o bairro ferroviário, o armazém de víveres do arquitecto cottinelli telmo, a estação do lavradio (já toda alterada), a ponte pedonal do bairro das palmeiras (exemplar típico da arquitectura ferroviária).
e sem os ferroviários...
o que vai ser deles!?

o que vai ser o barreiro!?
sem os ferroviários!?...
sem os comboios!?

13 agosto 2012

50 de abril




o que portugal  precisa não é  um 25 de abril
mas dois

um 25 de abril a dobrar

 um 50 de abril!

para limpar toda a corrupção
a merda
o lodaçal
em que bóia portugal!

limpar tudo
correr com a corja
que vive à pala do sistema democrático

mas democrático para quem?
só se for para eles

para quem trabalha e a quem cortam salários,
não é
para quem ficou desempregado,
 não é
para quem contribuiu uma vida inteira e agora querem roubar a pensão,
 não é
para quem tem de deixar o país, para a emigração,
não é

quem pensam "eles" que são?
a quem querem enganar?

cambada de gatunos e corruptos
que desde os anos 80 governa portugal

 e agora vêm dizer que está tudo mal!

vão-se embora!
eles é que têm de emigrar
vão para a comunidade
 para o raio que os parta
ou fiquem por lá
não fazem cá falta

mas deixem em paz portugal!

07 agosto 2012

e o dia nunca mais nascia



o dia só nascia quando o rebanho 
lesto
a caminho do pasto corria

as ovelhas e o pastor abriam a porta
ao dia

pelo céu os astros subiam
mas o dia não nascia


as rolas arrulhavam
"põe-te na rrrua
põe-te na rrrua"
e respondiam 
"põe-te na rua tu
põe-te na rua tu"

os melros
de bico amarelo
furavam a escuridão dos figos 

as pegas azuis
nas videiras
debicavam

todas as aves esperavam

mas o dia não nascia

só às andorinhas não incomodava
a penumbra da madrugada

mas o dia nunca mais nascia



os abelharucos

 a sua plumagem colorida
da cor do mar
e dos dias solares

esvoaçavam

e o dia!? que nunca mais nascia



o vento impaciente sacudia
do arvoredo
as últimas sombras da noite
e todos os medos

mas o dia não nascia

só quando o rebanho e o pastor passavam
então sim

é que o sol
acordava
preguiçava
esfregava os olhos
alongava-se
saltava
da noite para o dia



então os chocalhos tilintavam
alegria

 finalmente 
o dia nascia


e eu estava lá
e via