22 outubro 2010

o relógio de santa cruz dá horas



o relógio de santa cruz dá horas

mas horas de quê

horas de dormir, horas de acordar, horas de sair de casa, apanhar o autocarro, sair do autocarro apanhar o barco, sair do barco apanhar o metro, sair do metro correr um pouco apanhar o elevador, entrar no escritório a horas de saudar os colegas e ligar o computador.

quando o relógio de santa cruz dá horas, no peito batem saudades. a certas horas tenho saudades de certos sorrisos, quando chegavas a certas horas. está quase na hora de te dar um abraço. são horas de te dizer,e mesmo que o não diga, gosto de ti a todas as horas.


batem horas no relógio de santa cruz e podem ser horas felizes, horas de sorte, horas de azar, horas mortas, horas de chegada, horas de partida. pode ter chegado a hora de alguém um pai, uma mãe, um irmão, um amigo, uma amiga.


às horas que toca o relógio de santa cruz apita a sirene das oficinas. são horas do almoço. horas de escutar o silêncio ensurdecedor quando se desligam os motores das locomotivas em afinação. horas de sair para a rua descer a escadaria, apanhar um pouco de sol, ler o comunicado do sindicato a apelar à greve geral.

o sino do relógio da torre da igreja de santa cruz diz que são horas de sair de casa, passar pelo mercado, passear pela avenida e na companhia da amiga atravessar o parque a caminho do rio, que lisboa já está à espera há horas.

antes do bater das horas no relógio de santa cruz já a fila à porta da segurança social engrossou e dobra a esquina, horas e horas de espera para ouvir a mesma resposta: não há ofertas de emprego, volte cá no dia x às tantas horas.

o relógio de santa cruz dá horas e há corvos negros a grasnar desespero, em cima dos telhados das casas, há horas. nessas horas em que o relógio de santa cruz bate no tempo escutam-se vozes, ou serão corvos a grasnar, o orçamento, a crise, a austeridade, a instabilidade.

agora o relógio de santa cruz está a dar horas, olho e parecem-me horas de esperança. vamos a ver o que isto dá.

20 outubro 2010

esta cidade


foto: josé encarnação

chego

ainda com a luz e o espanto da planície

no olhar

debruço-me sobre a cidade na outra margem

turbilhão de  luzes

cidade do meu enleio

que me desarma

sempre à espera do meu olhar


cidade de angústia

e ainda assim que eu amo


esta cidade

este país

que não adormece

nem acorda

e me entristece

03 outubro 2010

hoje não quero o silêncio




hoje não quero silêncios

de bosques imaginados

não quero o silêncio dos rios perdidos

encantados

não quero silêncios de penumbras

transparentes


hoje não quero o passado


não quero as vozes ausentes

hoje não quero o silêncio das aldeias


hoje quero o presente


hoje quero bandeiras

vermelhas

vermelhas

como o sangue

que corre nas veias