13 dezembro 2009

Família Ferroviária por Manuela Fonseca

Nasci em 30 e Novembro de 1949 – a família alargada, ferroviária, a que pertencia, entre a António José de Almeida e os becos, travessas, ruas e avenidas limítrofes, rejubilou: tinha esperado dez longos anos por mim. E, paradoxo: cheguei tarde e cheguei cedo para ver, ouvir e sentir os comboios: os números das viagens e os percursos sabidos de cor, ditos pelo meu pai e o avô Fonseca (não conheci, infelizmente, o avô Horta ou teriam sido três a referi-los).
Fui educada – criada, como então se dizia – para além do campo do Barreirense e do Ginásio-Sede, quando passou, majestoso, a existir, no Depósito de Máquinas, nas Oficinas, a observar as composições.

Os desperdícios, recursos que ajudavam à limpeza das locomotivas, acompanhavam as duas bonecas que puderam ser-me oferecidas, a Fifi e a Orquídea Maria, acarinhadas e penteadas junto aos maquinistas, fogueiros, limpadores e operários enquanto a minha mãe, cognominada Rabicha 3, corria, corria por uma impecável logística do nosso Cristiano da Fonseca Júnior.

(As mulheres do pessoal de Tracção desdobravam-se na compra, confecção e entrega dos mantimentos que enchiam os cabazes de viagem, o Barreiro-Mar – como se lêssemos assim o nome – a testemunhar a aflição da entrega da comida confeccionada: do serviço de Reserva, os companheiros iam, quase inesperadamente, partir.)
As lágrimas, tantas, com o trabalho do meu pai! Dias e dias longe de casa – as lendas e os contos que não podia contar-me, as idas adiadas no Évora, os jogos de futebol, teatros e museus a que não podia levar-me, os sonhos para o futuro, o meu futuro, por enumerar de novo. A escola até me aborrecia sem o pai, apesar de tudo sempre presente na minha vida.
Que, cedo e inesperadamente, no início da aposentação que o desgostou, forçada por fascistas, fez a última viagem, bem depressa, talvez a pensar no Algarve e no Alentejo que amava e para onde muita gente e mercadorias transportara, os comboios como aldeias de labor, refeições, bilhas com água fresquinha compradas na Funcheira, novos saberes e convívio.
O tempo passou: os heróicos trabalhadores dos caminhos-de-ferro já não vêem as estações, renovadas, interessantes, embora quase vazias; já não vêem os comboios, bonitos e melhores, embora poucos e só para os arredores. Tudo mudou, o Barreiro também; a família ferroviária com a qual esperei a queda da ditadura é parte de uma saudade.

Os afectos que (também) me formaram continuam comigo, partilhados com as irmãs e os irmãos espirituais da minha infância de gente ligada à CP: a madrinha Maria João Bravo Silva Gomes, a Josélia e a Anete Simões, D. Maria Fernanda do Carmo Fráguas e a sua tribo, a Isabel Caeiro dos adoradores de comboios – expressão que me empresta para este texto –, o João Alberto Gouveia, o Carlos Godinho, a Maria José e o Júlio Dias, a Manuela Carvalho Pimentel.

Dos que moravam para lá do Barreiro-A – das cancelas, dizíamos –, o Joaquim Lopes (cujo pai tinha sido fogueiro do meu, bem como o dos mencionados Maria José e Júlio Dias), Brígida Cabrita Alves, a Maria Eduarda Carmona, Palmira Prates. No Lavradio, José Francisco Pereira, homem de saberes e estórias múltiplos e o Miguel dos Santos, filho do corajoso Martinho Santos e homónimo do tio, distinto Inspector.
E ainda acerca do Joaquim Lopes (estimado colega de liceu, continuador do nome e profissão do pai): também me levou à Escola Superior de Educação sem ambos sabermos disso. Vimo-nos no fim do percurso – não nos encontrávamos há anos – e recordámos, em emoção e minutos, a nossa juventude e o amor, sempre renovado, pelos comboios; nesse dia, como em tantos outros, eu conseguira estudar, admirar a paisagem e dormitar – ainda bem que pouco ando de automóvel.

Jorge Teixeira (parente do meu padrinho e primo Artur Cristiano Teixeira da Fonseca), Caro Proença, Gilberto Gomes, Armando Teixeira são dos nossos pelo estudo e partilha da História da Ferrovia. E junta-se-lhes o Zé Encarnação. Através das suas Artes: a de conduzir comboios, a informática e a fotográfica, esta na esteira de Mestre Augusto Cabrita.

Manuela Fonseca
(12-12-2009)

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